quarta-feira, setembro 28, 2005

De sonhos, mortes e funerais

Numa livre associação de idéias: gosto da idéia da morte, nos sonhos, porque marcam momentos de mudanças. E aí, nada como esse poema de Ferreira Gullar, "Traduzir-se", delicadamente pregado na memória por um dueto de Fagner e Nara Leão. Um bom fundo musical pras funerais.

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mimé multidão:
outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera:
outra parte delira.

Uma parte de mim almoça e janta:
outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente:
outra parte se sabe de repente.

Uma parte de mim é só vertigem:
outra parte, linguagem.
Traduzir uma parte na outra parte _
que é uma questãode vida ou morte _
será arte?

terça-feira, setembro 27, 2005

São Paulo com chuva?


Sampa com chuva é ouvir a voz de Ná Ozetti, cantando baixinho e tão pertinho o cotidiano da cidade.


"Olha as pessoas descendo, descendo
Descendo a Ladeira da Memória
Até o Vale do Anhangabaú
Quanta gente!
O céu ficou cinza e de repente trovejou
E a chuva vem caindo, caindo, caindo
Prendendo as pessoas nas lojas, nos bares, nas beiradas das calçadas
Quanta gente!
Com ar aborrecido olhando pro chão
Pro reflexo dos edifícios e dos carros
Nas poças d’água
E os pingos pingando, pingando, pingando
Olha as pessoas felizes, felizes, felizes!
Felizes porque a chuva que caía agora há pouco
Essa chuva que caía agora há pouco já passou..."

(Ladeira da Memória, Rumo)

40 graus no Rio


A chuva continua, mas hoje o espírito está mais carioca do que nunca.
Fernandinha Abreu comanda a massa do funeral e solta o batidão...

"Rio 40 graus
cidade maravilha
purgatório da beleza e do caos

capital do sangue quente do Brasil
capital do sangue quente
do melhor e do pior do Brasil

cidade sangue quente
maravilha mutante

o rio é uma cidade de cidades misturadas
o rio é uma cidade de cidades camufladas
com governos misturados, camuflados, paralelos
sorrateiros ocultando comandos

comando de comando submundo oficial
comando de comando submundo bandidaço
comando de comando submundo classe média
comando de comando submundo camelô
comando de comando submáfia manicure
comando de comando submáfia de boate
comando de comando submundo de madame
comando de comando submundo da TV
submendo deputado - submáfia aposentado
submundo de papai - submáfia da mamãe
submundo da vovó - submáfia criancinha
submundo dos filhinhos

na cidade sangue quente
na cidade maravilha mutante

rio 40 graus...

quem é dono desse beco?
quem é dono dessa rua?
de quem é esse edifício?
de quem é esse lugar?

é meu esse lugar
sou carioca, pô
eu quero meu crachá
sou carioca

"canil veterinário é assaltado liberando
cachorrada doentia
atropelando na xuxu das esquinas
de macumba violenta
escopeta de sainha plissada
na xuxa das esquinas de macumba violeta
escopeta de shortinho de algodão"

cachorrada doentia do Joá
cachorrada doentia São Cristóvão
cachorrada doentia Bonsucesso
Cachorrada doentia Madureira
Cachorrada doentia da Rocinha
cachorrada doentia do Estácio

na cidade sangue quente
na cidade maravilha mutante

rio 40 graus...

a novidade cultural da garotada
favelada, suburbana, classe média marginal
é informática metralha
sub-azul equipadinha com cartucho musical
de batucada digital

meio batuque inovação de marcação
pra pagodeira curtição de falação
de batucada com cartucho sub-uzi
de batuque digital, metralhadora musical

de marcação invocação
pra gritaria de torcida da galera funk
de marcação invocação
pra gritaria de torcida da galera samba
de marcação invocação
pra gritaria de torcida da galera tiroteio
de gatilho digital
de sub-uzi equipadinha
com cartucho musical
de contrabando militar

da novidade cultural
da garotada da favelada suburbana
de shortinho e de chinelo
sem camisa carregando
sub-uzi e equipadinha
com cartucho musical
de batucada digital

na cidade sangue quente
na cidade maravilha mutante

rio 40 graus
cidade maravilha
purgatório da beleza e do caos"


Rio 40 graus
Fernanda Abreu e Fausto Fawcett

domingo, setembro 25, 2005

Samba em Sampa


A primavera chegou trazendo flores, perfume e chuva.
Em homenagem a este domingo com cara de São Paulo, vamos de músicas para funerais paulistas:

A primeira é interpretada por Santa Rita Lee, da época dos Mutantes:


"O cérebro eletrônico faz tudo
Faz quase tudo
Faz quase tudo
Mas ele é mudo

O cérebro eletrônico comanda
Manda e desmanda
Ele é quem manda
Mas ele não anda

Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu

Eu cá com meus botões de carne e osso
Eu falo e ouço
Eu penso e posso

Eu posso decidir se vivo
Ou morro, porque
Porque sou vivo
Vivo pra cachorro, e sei
Que cérebro eletrônico nenhum
Me dá socorro
No meu caminho inevitável
Para a morte

Porque sou vivo
Sou muito vivo, e sei

Que a morte é nosso impulso primitivo
E sei
Que cérebro eletrônico nenhum
Me dá socorro
Com seus botões de ferro
E seus olhos de vidro

Só eu posso pensar se Deus existe
Só eu
Só eu posso chorar quando estou triste
Só eu.........."

Cérebro Eletrônico
Gilberto Gil


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A segunda é um sambinha, pra não dizer que Sampa não dá samba... Ouço a voz de Cristina Buarque cantarolando:

"Ah, quantas lágrimas
Eu tenho derramado
Só em saber que não posso mais
Reviver o meu passado
Eu vivia cheio de esperança
E de alegria
Mas hoje em dia
Eu não tenho mais
A alegria dos tempos atrás........."

Quantas Lágrimas
Manacés da Portela


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E pra encerrar, em dia que o Timão vence o menguinho e só me dá alegrias, vai um grito da Fiel...




Me dê a mão
Me abraça
Viaja comigo pro céu
Sou gavião levanto a taça
Com muito orgulho pra delírio da Fiel.

quarta-feira, setembro 21, 2005

galáxias



"circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo tenso um retenso um renegro prego cego durando na palma da mão ao sol enquanto vendem por magros cruzeiros aquelas cuias onde a boa forma é magreza fina da matéria mofina forma de fome o barro malcozido no choco do desgosto até que os outros vomitem os seus pratos plásticos de bordados rebordos estilo império para a megera miséria pois isto é popular para os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol pois não tinha serventia metáfora pura ou quase o povo é o melhor artífice no seu martelo galopado no crivo do impossível no vivo do inviável no crisol do incrível do seu galope martelado e azeite e eixo do sol mas aquele fio aquele fio aquele gumefio azucrinado dentedoendo como um fio demente plangeando seu viúvo desacorde num ruivo brasa de uivo esfaima circuladô de fulô circuladô de fulô circuladô de fulôôô porque eu não posso guiá veja este livro material de consumo este aodeus aodemodarálivro que eu arrumo e desarrumo que eu uno e desuno vagagem de vagamundo na virada do mundo que deus que demo te guie então porque eu não posso não ouso não pouso não troço não toco não troco senão nos meus miúdos nos meus réis nos meus anéis nos meus dez nos meus menos nos meus nadas nas minhas penas nas antenas nas galenas nessas ninhas mais pequenas chamadas de ninharias como veremos verbenas açucenas ou circunstâncias somenas tudo isso eu sei não conta tudo isso desaponta não sei mas ouça como canta louve como conta prove como dança e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e se verá que estou certo e será verá que tem jeito e se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento bagagem de miramundona miragem do segundo que pelo avesso fui dextro sendo avesso pelo sestro não guio porque não guio porque não posso guiá e não me peça memento mas more no meu momento desmande meu mandamento e não fie desafie e não confie desfie que pelo sim pelo não para mim prefiro o não no senão do sim ponha o não do im de mim ponha o não o não será tua demão"

Galáxias (trecho)
Haroldo de Campos

Fim do inverno ... é Natal!

Último dia do inverno, o frio vai ficando pra tras e as flores começam a aparecer.
Antecipando um pouco as datas, ofereço a vocês a letra de um dos nossos maiores poetas. Não sei que música acompanha, mas com Vinícius tudo vai bem...

"Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança do milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente."

Poema de Natal
Vinícius de Moraes