Roda viva
"Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração..."
Roda Viva
Chico Buarque de Hollanda
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Roda Viva
15/ 1/ 1968 - Rio de Janeiro/RJ
Teatro Princesa Isabel
Histórico
Espetáculo que radicaliza as propostas tropicalistas iniciadas em O Rei da Vela e promove seu diretor José Celso Martinez Corrêa à condição de expoente teatral do movimento. Espetáculo agressivo, síntese da ira e da rebeldia contra um momento político que divide a sociedade, entre a aceitação do regime militar ou a luta contra ele.
Tomando o texto de Chico Buarque em torno da vida de um ídolo da canção popular, figura manipulada, quer pela indústria fonográfica, quer pela imprensa, o encenador vê nele a possibilidade de acirrar a crítica à sociedade de consumo, uma das pontas de lança do tropicalismo. Apoiado na eloqüente cenografia e nos figurinos criados por Flávio Império, alcança o limite entre a ação no palco e seus desdobramentos na platéia. Numa passarela que invade o espaço da platéia, ocorrem muitas das cenas criadas para provocar os espectadores.
Tachada como emblema do "teatro agressivo" pelo crítico Anatol Rosenfeld1, a montagem reflete um momento em que o teatro assume esse tom violento, de confronto, de cobrança de atitudes frente a uma situação sociopolítica tensa e insustentável.
Na crítica ao espetáculo, Marco Antônio de Menezes descreve: "A cortina já está aberta quando você chega: enormes rosas à esquerda, enorme garrafa de Coca-Cola à direita, enorme tela de TV no fundo, uma passarela branca avançando até metade da platéia. [...] A campainha toca três vezes, a platéia faz silêncio, ruídos estranhos saem dos alto-falantes, na tela de TV aparece uma frase: 'Estamos à toa na vida'. [...] Entra o coro, com longas túnicas vermelhas e mantilhas pretas. Canta um triste Aleluia, rodeia Benedito. Aparece o Anjo da Guarda (Antônio Pedro), o empresário de TV, com asas negras, cassetete de policial na cintura, maquiagem de palhaço de circo: 'Benedito não serve, nós precisamos de um ídolo! Você será Ben Silver!' E o coro joga para trás as túnicas e mantilhas, é agora um grupo de jovens iê-iê-iê que canta: 'Aleluia, temos feijão na cuia!' [...] O espetáculo não está somente no palco, o coro invade a platéia, conversa com ela, e o empresário pede um minuto de silêncio em homenagem ao ídolo: cada participante do coro olha fixamente um espectador (agora todos já entendem por que a bilheteria insistiu em vender ingressos da primeira fila). [...] O minuto termina, Ben Silver é carregado para o palco num grotesco andor feito de long-plays e fotos de cantores, conduzido por grotescas caricaturas das 'macacas de auditório', que no fim do primeiro ato o levam embora, deitado sobre uma cruz de madeira, nu, cansado sob o peso do próprio sucesso. [...] Ben Silver, esgotado pelo sucesso, procura o consolo de sua mulher [...] para um linda cena de amor que é repentinamente interrompida pela câmara (sic) de TV e pelo Capeta (o jornalista desonesto) [...]. E juntos, o jornalista e o Ibope decretam o fim da carreira de Ben Silver: 'O ídolo é casado! E além de tudo, é bêbado!' Uma procissão de três matronas antipáticas tenta salvar o ídolo exigindo que ele faça caridade. Mas nada adianta, Ben Silver acabou. Só há uma solução: transformá-lo em Benedito Lampião, o 'cantor de protesto', vestido de nordestino, falando de 'liberdade' e de 'vamos lutar'. A esquerda festiva o aclama, o jornalista vendido perde sua porcentagem e a vontade de elogiar o Lampião. O Ibope, vestido de papa, decreta novo fim para Benedito Lampião. Para manter o prestígio, ele deve suicidar-se. [...] A platéia sai do teatro evitando sujar os saltos dos sapatos Chanel nos restos do fígado de Benedito Silva que o coro das fãs devora no final. [...] Tudo é caricatura do religioso no espetáculo, que, como atividade religiosa, se desenvolve em todo o teatro, palco, galerias, platéia (O teatro com que sonhava Antonin Artaud). Para criar o ídolo, ele é liturgicamente paramentado, peça por peça de seu ridículo traje prateado. [...] os atores se dirigem agressivamente à platéia, fazem perguntas, pedem assinaturas em manifestos, sacodem e encaram os espectadores (a censura de 14 anos me parece muito pouco severa para o espetáculo). Ben Silver se encontra com a esposa coroado de espinhos, nu, como o Cristo. A tentativa de salvar o ídolo em decadência é encenada como uma procissão, liderada pelo Capeta (seria a peça toda uma Missa Negra?) - que satiriza o jornalista marrom - usando como cruz o conhecido 'X' de lâmpadas empregado pelos fotógrafos. E a primeira cena entre Benedito e sua mulher é uma caricatura da Visitação de Nossa Senhora. [...] Elementos cristãos, aliás, são misturados com rituais pagãos (o fígado de Prometeu, as orgias de Dionísio), até com rituais políticos (a foice-e-martelo no chapéu nordestino de Benedito Lampião). José Celso, na realidade, mais que dirigir, celebrou Roda Viva".2
Por empregar em modo crítico símbolos eclesiásticos e da sociedade de consumo, e desvendar os bastidores de atuação do mercado cultural - demolindo mitos e padrões, escancarando escândalos e negociatas - Roda Viva encontra sérias oposições tanto entre a crítica e o público, e arregimenta, detratores, quanto entusiastas. Após bem-sucedida temporada no Rio de Janeiro, o espetáculo é invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas - CCC, nas apresentações em São Paulo, onde parte do cenário é destruída e o elenco espancado. Numa viagem a Porto Alegre, nova agressão se registra, o que leva a produção a suspender sua carreira.
Notas
1. ROSENFELD, Anatol. O Teatro Agressivo. In: TEATRO Paulista 1967. São Paulo: IDART, 1968.
2. MENEZES, Marco Antônio de. Roda Viva, de Francisco Buarque de Holanda. Jornal da Tarde, São Paulo, 2 fev. 1968. Divirta-se, p. 1.
Fonte* http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=espetaculos_biografia&cd_verbete=602
1 Comments:
Sensacional!!!!!!Por isso que esta obra se mantém viva até os dias de hoje. É de arrepiar.
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